Humanização Progressiva


A desumanização foi (foi?) um processo comum ao longo do desenvolvimento da civilização humana.
Índios, negros, ciganos, judeus, bárbaros… aqueles vistos como diferentes por povos conquistadores eram considerados sub-raças* humanas ou mesmo não humanos.
E, portanto, “passíveis de escravização ou extermínio”.

* Embora o conceito de raça no senso comum seja equivalente às etnias, na verdade a raça humana é apenas uma, sendo as características estruturais corpóreas insuficientes para configurar diferentes raças.

Ao serem catequizados, os indígenas passavam a “ter uma alma”, uma vez que o batismo cristão servia para fazê-los aceitar o Espírito Santo e escapar do Purgatório (e por isso até hoje batizam-se as crianças no catolicismo)


O conceito de civilidade dos colonizadores europeus considerava os povos descobertos como inferiores, chegando a considerar os índios seres sem alma e os africanos como animais irracionais e/ou mercadorias durante o período escravagista.

Cativos africanos eram transportados em condições sub-humanas nos navios negreiros


Portanto, a desumanização era uma “acrobacia moral” que permitia escravizar e matar outros seres humanos, uma vez que estes não seriam qualificados como tal.
Os experimentos genéticos de Josef Mengele, o Anjo da Morte, no campo de concentração de Auschwitz, são um exemplo claro e documentado de tal desumanização sobre a comunidade judaica.

Nos campos de concentração, os médicos nazistas praticavam todo o tipo de experimentos com os prisioneiros judeus


Aliás, a título de curiosidade mórbida, Mengele fugiu pra Argentina e depois viveu no Brasil, tendo morrido em Bertioga, São Paulo.
Entretanto, uma suposta vivência no interior do Rio Grande do Sul poderia ter resultado na grande incidência de gêmeos na cidade de Cândido Godói, reconhecida como o local com maior nascimento de gêmeos no mundo. E os nazistas tinham um estranho fascínio por gêmeos…

Os gêmeos em Cândido Godói: mistério ou manipulação genética de Mengele?


Bom, já nos games a desumanização é “aceitável”, uma vez que em geral precisamos matar hordas de inimigos. Os monstros e zumbis não causam problema, mas os seres humanos são um caso à parte.
Nazistas e terroristas são os principais alvos, pessoas de quem “não precisamos sentir culpa ao matar” (virtualmente), mas nem só deles é possível viver em todos os jogos.

Então, qualquer inimigo comum nos jogos precisa ser um mero alvo, em quem não se pensa ao executar.
Desta forma, a narrativa foca no herói e em seus algozes principais, mas nunca no soldado genérico comum que você enfrentará às centenas.
Afinal de contas, é mais fácil matar um simples soldado cujas únicas ações são atacá-lo, sem um background sobre o qual possamos refletir.

No Musou, matar milhares de soldados é comum e não envolve reflexão


Porém, nem todos os jogos agem assim.
A primeira lembrança de inimigos humanizados que me vem à cabeça é Spec Ops: The Line, título que aborda o Estresse Pós-Traumático (PTSD) em soldados e como isso afeta o seu discernimento.

Spec Ops The Line subverte a expectativa, levando o jogador a questionar as próprias ações


No título, encarnamos o Capitão Martin Walker, junto de seus dois companheiros de esquadrão, em uma missão de resgate em uma Dubai destruída e dominada por terroristas.
No entanto, conforme avançamos na trama, as ações de Walker são cada vez mais questionáveis até entendermos que ele havia perdido a sanidade e estava atacando seus próprios compatriotas.
Aqui, os inimigos são desumanizados ao confundir o jogador, que atira sem pensar em seus inimigos e chega a jogar uma carga de fósforo branco sobre um acampamento, para só depois descobrir que uma grande concentração de alvos na tela era de refugiados, protegidos por soldados americanos.

The Last Of Us Parte II aborda o tema de uma maneira diferente, colocando Ellie em uma jornada sangrenta de vingança, que vai cegando-a durante a trama, ao passo que Abby, até então considerada vilã, vai sendo humanizada conforme jogamos com ela em alguns segmentos e entendemos melhor seu ponto de vista.

Os cachorros mortos em The Last Of Us Part II são lamentados pelos seus donos


A coisa piora quando vemos a relação entre os inimigos e seus companheiros e cães, lamentando as mortes assim que localizam seus corpos, chamando-os por seus nomes, indicando aí um grau de humanidade que geralmente desconsideramos.
Alguns inimigos, após serem derrotados, imploram pela própria vida, cabendo ao jogador decidir matá-los ou não (e aqui faço a mea culpa, pois matei inimigos, incluindo cães, sem dó nem piedade).

B. J. Blazkowicz não enfrenta dilemas morais ao matar nazistas


Mas então, qual o caminho certo?
Tudo depende de qual rumo tomar.
A humanização de NPC’s funciona como uma via de mão dupla: ao mesmo tempo que torna inimigos mais críveis, o ato de matá-los fica mais problemático.
Por outro lado, inimigos desumanizados funcionam muito bem em jogos menos sérios, mas desumanizar povos específicos pode gerar muitas controvérsias, transformando a violência digital em algo eticamente errado ou mesmo imoral.

Até mesmo Mortal Kombat conseguiu achar uma solução menos drástica para os inimigos…


Spec Ops: The Line aborda de maneira excepcional o dilema da desumanização: enquanto atiramos em reles inimigos, não nos importamos com seus dramas, mas quando as ações de Walker mostram-se controversas, eliminando civis e aliados, somos forçados a questionar o dano causado.

Então, da próxima vez que jogar um título mais realista, lembre-se das vidas (digitais) que você está exterminando.
Ah não ser, é claro, se forem zumbis, robôs ou nazistas…

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