Review / Tutorial The Town Of Light

* Esta análise foi feita com a versão PS4 (via PS5)

Distribuidora: Wired Productions
Produtora: LKA
Plataforma:  PS4 / PS5 / Xbox One / Xbox Series S / Xbox Series X / Switch / PC / Linux / Mac OS
Mídia: Física e Digital
Ano de Lançamento: 2016 (PC e PS4) / 2017 (Xbox One) / 2020 (Switch)

The Town Of Light é um walking simulator/jogo de terror psicológico/suspense sobre a vida em um manicômio italiano durante a década de 40.

The Town Of Light lida com diversos temas pesados e psicologicamente perturbadores: abuso sexual, distúrbios psicológicos e comportamentos considerados subversivos. 
O aviso no início do jogo não foi colocado lá apenas para causar uma impressão no jogador: o assunto é realmente sério; esteja ciente ao jogar o título.

VOLTERRA E A REALIDADE DOS MANICÔMIOS

O Hospital Psiquiátrico de Volterra foi fundado em 1888, na cidade de Volterra, na região da Toscana, Itália.
Conhecido pelo tratamento brutal que era aplicado aos internos, foi fechado em 1978, pela Lei Basaglia 180, que reformulou o tratamento psiquiátrico na Itália, fechando todos os hospitais psiquiátricos.
Em 2018 foi reaberto, apenas para visitação do público.

Volterra atualmente, com diversos grafites e pichações dos anos abandonados

Franco Basaglia (1924 – 1980) foi um psiquiatra italiano que promoveu a reforma no sistema de saúde mental do país.
Tendo administrado o hospital psiquiátrico de Goziria (sua cidade natal) nos anos 60, executou uma série de mudanças práticas e conceituais, relatadas no livro A Instituição Negada (1968). Entre os co-autores do livro, encontra-se também Giovanni Jervis, outro psiquiatra italiano, que mais tarde escreveria o Manual Crítico de Psiquiatria (1975), mais acessível ao público leigo, onde descrevia o movimento em torno da Associação Psiquiátrica Democrática Italiana.

Franco Basaglia, o psiquiatra responsável pela reforma nas instituições mentais italianas

Em 1979, Basaglia visitou o Hospital Colônia de Barbacena, na cidade de mesmo nome, em Minas Gerais, no Brasil, tendo comparado a instituição a um campo de concentração nazista, dado o tratamento que os pacientes recebiam.
Fundado inicialmente como hospital para tuberculosos, acabou tornando-se uma instituição psiquiátrica mais tarde.
Os pacientes chegavam em grandes vagões de carga, conhecidos como “trens de doido”; foi fundado em 1903, com 200 leitos, mas em 1961, contava com cinco mil pacientes.

Hospital Colônia em Barbacena, depósito de marginalizados pela sociedade

Para Colônia eram enviadas “pessoas não agradáveis”, grupo no qual se incluíam opositores políticos, prostitutas, homossexuais, mendigos e pessoas sem documento, entre outros grupos marginalizados da sociedade. A estimativa é de que 70% dos pacientes não possuíam nenhuma doença de ordem mental. Entre as décadas de 1960 e 1970, o hospital chegou a ser conhecido como o “Holocausto Brasileiro”. Aproximadamente 60 mil pessoas morreram em Colônia.

MEMÓRIAS DESENCONTRADAS

O jogo se passa no Ospedale Psichiatrico di Volterra, uma versão fictícia inspirada no local real homônimo (Hospital Psiquiátrico de Volterra).
Você controla Renée, uma garota que foi paciente do local nos anos 40, em meio à Segunda Guerra Mundial e Fascismo* Italiano, liderado por Il Duce, Benito Mussolini.

*Não vou adentrar os meandros do fascismo, pois o mesmo é ligeiramente citado no jogo. No entanto, dado o uso excessivo do termo nos tempos atuais, cabe ressaltar que aqui trata-se do verdadeiro Fascismo (ao menos em sua vertente italiana), enquanto Estado Totalitário de fato, não apenas ideologia política ou interpretações indiretas e/ou acusações.

Benito Mussolini em um de seus inflamados discursos

Ao adentrar o antigo hospital de Volterra, agora abandonado e destruído pelo tempo, Renée (em 2016) revive as memórias do tempo em que esteve internada na instituição.
Descobrimos que ela foi internada por promiscuidade, depressão e o inconstante relacionamento com sua mãe. Sentindo-se abandonada, ela encontrava conforto em sua boneca, Charlotte.

Charlotte passa a personificar sentimentos de Renée

Conforme é “assaltada” por mais flashbacks, o passado de abusos sexuais sofridos é revelado, inclusive dentro do hospital, por um homem sem nome (possivelmente um enfermeiro).
Renée escreve em um diário, conforme orientação dos médicos, e seus confusos pensamentos nos são revelados conforme progredimos na trama.
Abusos, medo, solidão: sentimentos que Renée experienciou por toda a vida, estão registrados nas páginas, bem como seu relacionamento com outras internas.
Dentre elas, Amara, com a qual vive um caso de amor proibido dentro da instituição (homossexualismo era também considerado um desvio de conduta, passível de punição).

Amara, à direita, passa a ser a esperança de Renée dentro de Volterra

Separadas, Renée perde o contato com Amara totalmente e lhe é sugerido que a garota nunca existiu, sendo apenas fruto de sua psicose.
Neste ponto, o roteiro joga com informações desencontradas para confundir a mente de Renée (e, consequentemente, do jogador).
A jovem passa a duvidar de suas próprias memórias, indo atrás de provas da existência de Amara.

NAVEGANDO POR UM PESADELO

As diversas alas da construção são visitadas pelo jogador conforme avança e a mente de Renée permite.
Fica implícito que os impedimentos de avanço, como portas trancadas e mesmo escombros, são na verdade bloqueios da psique da garota.

Abuso sexual sofrido dentro da instituição: um ciclo de sofrimento contínuo na mente de Renée

Ao adentrar salas, Renée revive momentos, tendo alucinações representadas por gravuras estáticas e mesmo algumas mais consistentes, nas quais pode até mesmo ser “transportada” para diferentes salas.

Traumas representados através de alucinações

Documentos relatando a situação de algumas pacientes e mesmo o diagnóstico de Renée podem ser encontrados dentro da instituição. Através deles algumas memórias são desbloqueadas, revelando mais sobre suas patologias reais e sobre a negligência da equipe de enfermagem.

Renée revive uma das sessões de eletrochoque

Alguns dos procedimentos realizados podem ser observados em relatos, memórias e mesmo em manuais médicos ilustrativos (bastante realistas, diga-se de passagem).
Diversos procedimentos cirúrgicos eram realizados nas pacientes, aparentemente até mesmo abortos
A eletroconvulsoterapia* (o famigerado eletrochoque) era aplicado nas pacientes e até mesmo lobotomias eram perpetradas.

*Ainda hoje a terapia de eletrochoque é utilizada para casos mais graves, como depressões extremas, transtorno bipolar e alguns tipos de esquizofrenia; contudo, no passado era um tratamento comum para os “não desejados”, como homossexuais, inimigos políticos, etc.

Decisões mudam rumo de capítulos: legendas em português, mas escrita nos documentos em italiano


Ao ler sobre seus diagnósticos, negligências e abusos sofridos, Renée confronta suas memórias, tentando estabelecer o que é real e o que é fantasia.
Nestes momentos é possível escolher alternativas que poderão alterar alguns capítulos, sendo as respostas representadas por uma figura de costas para um grupo de figuras (representando rejeição do grupo ou indiferença aos demais por parte do indivíduo) e uma figura voltada ao grupo de figuras (representando a aceitação do grupo ou a normalização do indivíduo ante à sociedade).
Não fica exatamente claro o que ambas as imagens representam, sendo as interpretações entre parênteses do autor do texto.

REPRESENTAÇÃO ESQUIZÓIDE

Os gráficos de TOL não são particularmente bonitos, mas os cenários são bem representados e os personagens são muitas vezes apresentados de formas grotescas, sendo pela ausência de globos oculares ou mesmo proporções disformes, o que ajuda na caracterização do aspecto sombrio da mente da personagem.

Os cenários e a iluminação dão um bom clima de suspense constante

Os modelos 3D de personagem aparecem pouco durante o jogo e são os mais deficitários (ok, o jogo é originalmente de 2016, então coloque 5 anos de defasagem aí).

A parte sonora é muito bem utilizada, com som 3D evocando vozes de crianças ao longe, passos que ecoam pelos corredores vazios e outros sons indistinguíveis e perturbadores.


O jogo possui poucas partes com trilha sonora, o que casa perfeitamente com a proposta, mas há seus momentos, como uma canção em italiano pelas vozes de diversas crianças e mesmo a bela canção de encerramento Sóley – I Will Find You.

DESAFIO E PLATINA

Por se tratar de um jogo mais narrativo, não há grandes desafios por parte do gameplay, que consiste em interações com objetos.
poucos puzzles e de fácil resolução, sendo a navegação a parte mais complexa em alguns momentos, quando não se há certeza de onde ir.

O diário de Renée: experiências de uma vida despedaçada

A platina consiste em achar todas as páginas do diário de Renée, zerar o jogo, achar todos os desenhos de criança e fazer todas as variações de capítulos onde é possível.

RESUMO DA ÓPERA:
The Town Of Light é um profundo e desesperador mergulho na mente de uma paciente psiquiátrica nos anos 40.
Rejeitada pela sociedade, seus “desvios de conduta moral” confundiam-se com sua real patologia, problema comum na psiquiatria arcaica.
Os antigos manicômios foram banidos por serem “depósitos de indesejados”, que mais causavam danos do que realmente curavam e/ou reabilitavam indivíduos, o que é magistralmente retratado no título.
Como dito no início do texto, TTOL é um jogo perturbador e que requer não apenas maturidade por parte do jogador, mas também um bom equilíbrio emocional.
Mais perturbador do que suas alucinações, as memórias de Renée revelam as monstruosidades causadas pelo preconceito e ignorância em querer “curar” comportamentos diferentes, o que ainda acontece nos tempos atuais, mas era ainda mais forte no meio do governo fascista italiano, na década de 40.
Um importante relato sobre o passado oculto da psiquiatria, onde os indesejados tornavam-se invisíveis perante a sociedade que os abandonara.

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