
* Esta análise foi feita com o código cedido pela Raw Fury (versão PS4)
Distribuidora: Raw Fury
Produtora: Krillbite
Plataforma: PlayStation 4 / Xbox One / Switch / PC / Linux / MacOS / Apple Arcade
Mídia: Digital
Ano de Lançamento: 2019 (2020 nos consoles)
O Vazio Do Existir
Mosaic é uma desventura jogável, passada em um mundo monótono e monocromático, com um protagonista apático que não mais vive, mas apenas sobrevive.
O ciclo se repete: você acorda, ainda atordoado, e verifica as mensagens no celular e as notícias, talvez seja preciso estapear o próprio rosto para reagir e sair da cama.
Vai até o banheiro, escova os dentes, ajeita o cabelo e a gravata, lava o rosto. Neste momento, o personagem encara o reflexo abatido no espelho… (soa familiar?)
A geladeira vazia (tanto quanto o próprio personagem) é um convite para ir trabalhar.
Ao entrar no elevador, os vizinhos se afastam, como se você fosse um pária (sentimento que será comum nas multidões).

A todo momento, é possível sacar o celular e jogar BlipBlop, um “tap game”.
O BlipBlop é uma mecânica a parte, sendo troféus/conquistas baseados somente nele, mas vamos chegar lá mais à frente no texto.
O emprego do personagem consiste em outro minigame, onde “células” (extratores) precisam ser preenchidas com energia (recursos) de núcleos. O objetivo é enviar todos os recursos para a meta (da empresa), criando ligações, utilizando mais recursos para a criação de novos “núcleos”.
O trabalho é também monocromático, mas então surgem desobediências, representadas por cores “líquidas”, que avançam sobre os núcleos, corrompendo-os.
É preciso combater tais desobediências com mais recursos monocromáticos, até enjaular a cor, uma clara alusão à felicidade sendo combatida pela enfadonha rotina do escritório.

Ao voltar para casa, a monotonia dos engravatados caminhando no mesmo ritmo e na mesma direção, em ruas cinzentas e sem vida até embarcar no metrô lotado, ignorando o protagonista, guia o personagem.
O celular é a sua única distração, e lá está o BlipBlop para distraí-lo, embora ele próprio seja um jogo repetitivo e com o único desafio de clicar mais e mais, num ciclo sem grandes surpresas ou novos estímulos.
O Despertar Do Coma Cotidiano
Certo dia, mudanças na percepção do protagonista se alteram.
Ao acordar, vê um peixe dourado deitado na pia do banheiro.
Este peixe (provavelmente sua consciência ou alguma parte da psique que passa a se autoanalisar) conversa com o protagonista e começa a questioná-lo.
O peixe passará a habitar o imaginário do personagem, surgindo em situações corriqueiras na volta do trabalho e guiando-o em direção a quebras da rotina que desafiam sua mente. Uma borboleta amarela voando do outro lado da rua; um músico tocando saxofone numa área arborizada, escondida atrás dos prédios cinzentos, como em uma realidade paralela da cidade.

Mesmo que o peixe tente combater o estilo de vida moroso e sem cor do personagem, as dívidas se acumulam no aplicativo do celular. Contas vencidas se empilham sobre a mesa da cozinha.
As notícias são cada vez mais esdrúxulas e comerciais: aumento no número de moradores de rua, políticos querendo proibir artistas de rua, produtos prometendo maravilhas, etc…

O protagonista então tenta o Love, aplicativo semelhante ao Tinder, onde também é possível ver a quantidade de pessoas que não te escolheram.
Obviamente os resultados negativos são astronômicos, mostrando que depressão e o estilo robótico de vida moderna estão tentando segurar o protagonista de qualquer jeito, grilhões mentais que drenam a vida e a felicidade constantemente.
“Não Sois Máquina, Homem É O Que Sois”
A frase de Charles Chaplin, proferida no filme “O Grande Ditador” (1940), alude ao trabalho maquinal e repetitivo das indústrias, à despersonalização do homem moderno e à supressão dos sentimentos humanos.
Este trabalho aprisionador e melancólico também foi abordado em “Tempos Modernos” (1936), onde Chaplin representava um trabalhador em uma linha de montagem industrial.
Embora em tom cômico, o personagem mostrava claros sinais da perda de personalidade com os movimentos repetitivos que acabavam por torná-lo mais uma engrenagem do que um homem.

Em Mosaic, o trabalho não é em uma fábrica, mas num escritório, igualmente tedioso.
A repetição diária e a ideia de que os recursos precisam ser focados na meta da empresa, em detrimento da saúde mental/felicidade do funcionário, mostram uma das facetas da depressão e da já famosa, embora “recente” Síndrome de Burnout*.
* Síndrome de Burnout é o distúrbio depressivo que causa esgotamento físico e mental, diretamente relacionado à vida profissional).
Niilismo Digital
Mosaic possui um forte caráter niilista, ou seja, a existência (mais precisamente a individualidade) do personagem perde o seu valor.
A falta de propósito do emprego e o isolamento social (neste caso, promovido pelos vizinhos e colegas) relegam a existência do sujeito ao Nada.

O protagonista leva os dias no mesmo ritmo desanimado, sem perspectivas de melhora, anestesiado da Vida.
Isto é reforçado por uma série de analogias: o personagem não possui nome, sendo referenciado em mensagens apenas como filho, amigo ou com um número de série na empresa.
O BlipBlop, jogo de celular no qual ele se vicia é apenas um jogo de clicar na tela para gerar mais pontos e bônus, não há nenhuma recompensa “real” ou grande estímulo para tal.
Inclusive a platina gira em torno do jogo mobile, uma série de troféus repetitivos e consistindo em repetir padrões de cliques, desafiando indiretamente o jogador a se render à monotonia para ganhar troféus (PS4), um “prêmio que não leva à nada” na vida real.

O emprego dele é também completamente frio e sem vida, buscando apenas satisfazer a empresa através de metas inalcançáveis, sendo cada vez mais negativas as mensagens pelo celular sobre a produtividade, os atrasos e a redução salarial, além da constante ameaça de demissão.
As megacorporações tentam vender estimulantes e felicidade através de produtos claramente apenas comerciais, com slogans vazios e bastante óbvios (novamente, assustadoramente familiar com a realidade).
Comando E Percepção
Mecanicamente, Mosaic é um jogo simples.
Boa parte da aventura consiste em andar e interagir com objetos do cenário.
O celular e o computador do serviço consistem nas partes mais interativas.
O jogo sofre com algumas engasgadas (especialmente em cenas com chuva).
O gráfico e a arte conversam com o tema, sendo os personagens com formas desproporcionais e idênticas: os engravatados nas ruas parecem todos iguais, a cidade e todo o resto são construídos em traços retos e cores frias (tons de cinza e preto).

A esperança e a vida esquecidas pelo personagem são representadas em cores vivas e quentes, cenários mais arredondados como bosques escondidos atrás dos prédios, músicos e animais.
As “alucinações/sonhos” possuem também cores vivas e brilhantes.
A trilha sonora é escassa e pontua bem os momentos onde se faz necessária, sendo seu silêncio mais significativo diante do sentimento de opressão que o jogo passa.
RESUMO DA ÓPERA:
Mosaic é um jogo simples em essência, tratando de temas profundos como o cotidiano corporativo tóxico que nos afasta de nossos objetivos, empregos que nos robotizam e o celular que nos escraviza digitalmente.
A narrativa é minimalista, mas nos conta através de analogias nossos tempos modernos, causando um certo incômodo ao nos identificarmos com o protagonista sem nome. O estilo artístico passa bem a opressão do existir em detrimento do viver.
A performance (PS4 FAT) deixa um pouco a desejar em determinados pontos.
PONTOS POSITIVOS:
– narrativa imersiva, abordando temas profundos
– crítica social contundente através de diversas analogias
– arte bem costurada com o roteiro
– um dos jogos com a maior quantidade de idiomas disponíveis que já vi
PONTOS NEGATIVOS:
– gameplay repetitivo
– performance instável em certos pontos
– platina propositalmente exaustiva (eu entendi a crítica, mas continua sendo cansativa)
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