
“Quis custodiet ipsos custodes?”
A célebre frase do poeta romano Décimo Júnio Juvenal (55d.c. a 127 d.c., aproximadamente), literalmente “Quem há de vigiar os próprios vigilantes?” ou, em sua versão mais conhecida, “Quem vigia os vigias?” é um clássico sobre paranoia e hipocrisia.
Ah, os boicotes…
Já vi algumas (dezenas de) tentativas ao longo da minha vida.
Produtos de países, empresas de roupas, filmes, livros e, claro, games.

A ideia do boicote é até válida e interessante: parar de consumir algo que, de alguma maneira, vá contra os seus princípios.
Na teoria, funciona; na prática, coletivamente, é inviável.
Um indivíduo consegue boicotar um produto específico, se quiser, mas isto não gera nenhum impacto verdadeiro para o alvo.
Então as pessoas se agrupam para criar uma onda de boicotes e “fazer a diferença”.
Mas como aprendemos no primeiro semestre de História: “A anarquia não funciona em grupos com mais de 600 pessoas.”
E boicotes sofrem de um problema parecido.

Após os ataques às Torres Gêmeas, em 11 de Setembro de 2001, os EUA entraram em sua “guerra ao terror”, empreendendo uma campanha contra o Afeganistão.
Aqui no Brasil, grupos decidiram boicotar todos os produtos norte-americanos.
Acontece que nós consumimos muitas marcas do país de origem e, quando há concorrentes nacionais ou de outros países, muitas vezes seus preços são impraticáveis e/ou sua qualidade é inferior.
Só que muitas destas pessoas não boicotaram a Coca Cola, com o argumento de que, embora uma marca americana na origem, o produto é produzido aqui mesmo.
A Coca Cola, no entanto, era uma das empresas que patrocinava o mercado bélico americano, ou seja, enquanto boicotavam uma série de produtos americanos, estas pessoas continuavam bebendo sua Coca no fim de semana, patrocinando indiretamente os mísseis que eram disparados sobre os afegãos.
Irônico, não?

Mais irônico ainda, e aqui entra a hipocrisia da problematização, é que os substitutos poderiam ser produtos de origem europeia, países que foram colonialistas e exploraram centenas de outros países, incluindo o Brasil.
E eu disse origem europeia? Eu quis dizer origem da marca.
A fabricação de muitos produtos é chinesa, mesmo dos produtos ditos de origem americana.
A China fabrica praticamente tudo que consumimos hoje em dia.
Se você quiser boicotar produtos chineses, boa sorte vivendo no mato!
Estes produtos são fabricados muitas vezes em condições de semi-escravidão e nós os consumimos todos os dias.
Este é o lado feio do capitalismo, para o qual viramos o rosto, fingindo não perceber.

O texto, é claro, foi pensado por outro motivo: o boicote de Hogwarts Legacy.
O jogo sai na semana de publicação deste texto e está sofrendo uma onda de boicotes por parte da comunidade trans e de parte dos fãs de Harry Potter.
O motivo: os infelizes comentários da autora sobre pessoas trans e sua “cruzada” no twitter utilizando falas transfóbicas.
Estas, no entanto, são opiniões que ela vem tecendo ao longo do tempo, a partir de 2020.
E nada do que ela falou aparece na obra, ou seja, é preciso separar o autor de suas obras.
Mas as pessoas estão revoltadas e querem boicotar o jogo.

Entretanto, qual a relevância deste boicote?
J. K. Rowling sequer participou da produção do jogo.
Ela certamente recebeu pelos direitos de uso do universo criado e, dependendo do contrato feito, pode receber mais dinheiro pelas vendas dos jogos.
O boicote contra ela, no entanto, não surte efeito algum na autora, que sequer parece se importar com os cancelamentos on-line.
Além de mirar no alvo errado, este boicote pode afetar a equipe que se envolveu com a produção do título e que sequer parece se posicionar a favor das ideias da autora.
Pelo contrário, o jogo incluirá uma personagem trans na trama.

Então qual é o peso real deste boicote sobre Hogwarts Legacy?
A revolta será justificada?
Não é o que apontam as primeiras análises do jogo, que já está sendo muito bem avaliado e deve conseguir um bom número de vendas, dado o tamanho da franquia.
Afinal de contas, quem boicota os boicotadores? O restante do público e mesmo parte dos próprios boicotadores!