Precisamos Falar Sobre Lovecraft

Você já deve ter notado que o universo do escritor H. P. Lovecraft está em alta no momento.
Diversas peças artísticas estão abordando temas diretos ou sendo inspiradas pela obra do escritor americano de horror cósmico.
O autor está em alta também nos games, com diversos títulos inspirados (alguns dos quais com reviews no site).

Howard Phillips Lovecraft nasceu no século XIX (1890) em Providence, Rhode Island.
Grande influenciador no gênero do terror, o autor possui uma complicada relação com a questão racial.
Conservador e anglófilo (amante da cultura da Inglaterra) por natureza, sua obra demonstra um estilo arcaico, repleto de vocabulário e ortografia britânicos, deixando clara sua preferência.

No entanto, não é esta a parte preocupante, e sim seu desprezo pelos negros retratado em suas obras, bem como um aparente sentimento de animosidade com a ideia de imigração.

Há de se fazer uma separação clara aqui: autores/criadores de conteúdo com ideias preconceituosas não são raridade.
No entanto, e isto depende bastante do consumidor em si, nem sempre a obra é maculada pelas ideias do criador.

Particularmente, consigo separar criador de criatura no que concerne às obras que consumo, desde que o preconceito em si não transpareça na criação.
Outras pessoas já não conseguem fazer esta separação, especialmente no caso de artistas contemporâneos, pois não gostam da ideia de contribuir financeiramente para alguém que demonstra preconceitos com os quais não concordam, o que é um ponto bastante válido.

Há um segundo ponto que também deve ser observado: personagens não devem ser confundidos com criadores de conteúdo. Um personagem racista em um livro não necessariamente transpõe as ideias de um autor racista. As intenções de personagens podem ser apenas intenções de personagens, criadas intencionalmente como características psicológicas dos mesmos.

Ok, posto estes dois pontos, voltemos ao caso de H. P. Lovecraft.
Em Herbert West–Reanimator, podemos ler: “O negro foi nocauteado e um breve exame nos revelou que ele assim ficaria. Ele era uma coisa grotesca, parecida com um gorila, com braços anormalmente longos que eu não poderia evitar de chamar de patas dianteiras (…). O corpo deve ter parecido ainda pior em vida – mas o mundo contém muitas coisas feias.”

Em “O Horror Em Red Hook“, o detetive Thomas F. Malone espanta-se com negros e imigrantes nas ruas, retratados de formas monstruosas, o que parece coincidir com o pensamento real do autor, segundo escrito por sua esposa, Sonia Greene: “Sempre que andávamos em meio à multidão e nos deparávamos com pessoas das mais diferentes raças, uma característica comum de Nova York, ele ficava lívido de raiva e quase perdia a cabeça”.

Além destes trechos, temos também o poema “Sobre A Criação dos Negros”, onde Lovecraft deixa clara sua veia racista.
Em uma análise mais apurada, podemos notar como os monstros de Lovecraft são representações de outras raças e de como seu desprezo por estas era representado pela forma como o dito “homem comum”, geralmente o personagem branco da história, perdia sua sanidade ao contato com tais seres.
Lembrando que os seres de Lovecraft possuem uma natureza de certa forma alienígena e que tal termo, originalmente, significa um estrangeiro ou forasteiro. A conotação espacial que temos hoje é uma variante do significado original.

Mesmo que esta fosse a visão comum de mundo da época, o racismo evidente de Lovecraft destaca-se e mancha sua obra.
Não necessariamente deve ser descartada, mas vista sob certas ressalvas e mais celebrada em suas homenagens, onde muitas vezes o aspecto racial e xenófobo é deixado de lado por aqueles que se inspiram, com foco maior na parte lúdica em si.

E claro, de maneira alguma devemos alterar ou aceitar que a obra original seja modificada para amortecer o impacto atual.
O passado não deve ser amenizado para ofender menos, mas sim ser retratado como originalmente criado, ainda que sempre que possível com comentários destacando seus defeitos e ideias erradas.

Lovecraft, infelizmente, revela uma face tão monstruosa em seus pensamentos quanto seus Grandes Anciãos.
Um retrato de outrora, que não deve ser esquecido, para que evitemos sua repetição no presente e futuro.

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