Lilith E O Sagrado Feminino



Antes de começar, dois avisos: este texto trata do Sagrado Feminino dentro das interpretações mitológicas, sem enveredar para o lado místico/mágico; de modo semelhante, as interpretações e referências às religiões abraâmicas referem-se apenas ao caráter teológico, sem intenção de ferir as crenças dogmáticas dos leitores.

Esse é um daqueles assuntos complexos que eu queria abordar aqui faz algum tempo, mas ainda estava em dúvida de como fazê-lo.
Como Lilith é a vilã em Diablo IV, achei que a oportunidade vinha a calhar, então este será um texto-base para o assunto do Sagrado Feminino e também da controversa figura de Lilith.


Lilith é uma figura tão antiga quanto as crenças humanas.
Adorada como entidade na Mesopotâmia e Babilônia, ela torna-se um demônio nas crenças judaica e islâmica, sendo então citada como a primeira mulher de Adão, feita igualmente à imagem e semelhança de Deus. No cristianismo, entretanto, ela aparece sutilmente, não no Gênesis, mas em Isaías 34:14: “Os gatos selvagens se juntarão a hienas, e um sátiro clamará ao outro; ali também repousará Lilith e encontrará descanso.”

Esta Lilith, entretanto, refere-se à antiga entidade, cultuada por sumérios e babilônicos, muitas vezes como um grupo de “demônios” associados aos ventos e tempestades ou uma deusa lunar.
Enquanto deusa, ela possui fases boas e ruins, como os ciclos lunares, que também estão associados aos ciclos menstruais femininos (mas voltaremos no assunto mais à frente).

Lilitu, as entidades dos ventos e tormentas na Suméria


Enquanto primeira mulher de Adão, Lilith é tida como feita em igualdade ao Homem, tanto em importância quanto em material (pó e/ou barro).
Mas é dito que Lilith recusa-se a obedecer Adão e, por conta disto, é banida do Éden para a Escuridão, tornando-se um demônio.
A partir deste ponto, muitas versões surgem, sendo a de que ela copulou com Samael (o anjo caído que torna-se Satanás e também a Serpente do Paraíso) e passou a parir demônios em abundância, a mais comum.

Lilith influenciando Eva: as duas faces da mulher


E aqui temos o primeiro sinal de deturpação do chamado Sagrado Feminino, um conjunto de ideias dos cultos primevos.
As religiões surgem, primeiramente, como uma forma de interpretar o mundo.
A mulher, enquanto ser que gera a vida em si, passa a ser a detentora do poder sobre a Vida e, por conseguinte, surgem as deusas e deidades femininas da fertilidade.

Em culturas politeístas, há sempre deusas da fertilidade e amor (não necessariamente a mesma), que coexistem com deuses, em um panteão integrado e sincrético.
É comum a estas culturas rituais de fertilidade e “acasalamento ritualístico”, por vezes confundidos com a prostituição.
Rituais de fecundidade performados em templos por sacerdotisas podem ser interpretados em alguns momentos como prostituição, tornando a “profissão mais velha do mundo”.
Uma das teorias diz que Maria Madalena, na Bíblia, poderia ser uma sacerdotisa da fertilidade, transformada em prostituta pela cultura cristã, seja pela má interpretação do ato ou pela deturpação proposital de outra religião.

Astarte, deusa fenícia da fertilidade e filha de Baal (deus do fogo que posteriormente seria demonizado e unido a Zebub, o senhor das moscas, para tornar-se Baalzebub ou Belzebú)


Gaia (a Titã primordial da mitologia grega, que representa a própria Terra), Hera e Afrodite (deusas gregas da fertilidade e amor, respectivamente), Freya na mitologia nórdica, Ísis no Egito, Astarte na mitologia fenícia, Inana na Mesopotâmia, dentre tantas outras, representam esta ligação entre a energia feminina e o surgimento da vida.

Conforme as religiões monoteístas tornam-se as dominantes, o deus uno de cada uma passa a ser masculino, como forma de colocar o homem em escala hierárquica superior.
Eva, a segunda mulher de Adão (ou a primeira, no cristianismo), é subserviente ao Homem, criada a partir de sua costela, mas acaba por levá-lo à Perdição no Pecado Original, ao oferecer-lhe o fruto do conhecimento.
O Fruto, oferecido pela Serpente (demônio), representa em parte a “malícia”, pois agora o casal envergonha-se por estar nu diante de Deus.

À esquerda, Adão e Eva tentados por Samael e banidos do Éden; à direita, Lilith se torna a senhora da noite


Perceba que aqui temos várias simbologias: o Fruto pode ser a malícia e o próprio sexo; tal conhecimento, fornecido pelo demônio à mulher, mostra a tendência feminina à bruxaria e ao proibido.
Banidos do Éden, foram punidos com a vida mortal, sendo à Eva também direcionado o sofrimento da gravidez e do parto, como forma de pagar pelo Pecado Original.
Desta forma, a mulher é rebaixada na sociedade e seu sofrimento é justificado, ao mesmo tempo em que ela deve obedecer ao homem.
Só neste trecho temos duas mulheres vilanizadas: Lilith transformada em demônio por sua volúpia e rebeldia, Eva expulsa do Paraíso por sua desobediência.

Banida para as trevas, Lilith torna-se um demônio infanticida


Em sociedades matriarcais, geralmente uma deusa ou entidades feminina controla o panteão ou tem igual poder à deidade masculina.
Este conceito é mais comum aos povos célticos, mas vemos uma representação (ainda que futurística) de tal sociedade em Horizon Zero Dawn, onde o povo de Aloy é governado por matriarcas que adoram uma “entidade” feminina, que acaba por tratar-se de uma inteligência artificial criada pelos humanos do mundo passado.

As Matriarcas de Nora, em Horizon Zero Dawn, constituíram uma sociedade em torno de sua “deusa”, remontando ao início da humanidade


Já nos panteões mistos, quando existem diversas entidades femininas, é comum que haja uma separação entre deidades do casamento e amor maternal e aquelas mais voltadas ao poder lunar e à noite (Nix na mitologia grega, por exemplo).
A Lua, por possuir influência sobre o ciclo menstrual e as gestações, passa a ter papel importante em panteões.

Nix, a Noite grega, representa as várias faces da Mulher e seus mistérios


Note que toda divindade feminina tem ligação direta ou indireta com a Lua, representando apenas uma ou todas as fases lunares.
Quando separadas, as deusas mais “comportadas” e as mais “libertinas” assumem cada qual sua fase correspondente. Já quando uma deusa associa-se diretamente à Lua, assumindo todas as suas fases, seu caráter costuma ser mais volátil, variando entre diferentes humores (e servindo de explicação para a TPM, por exemplo).

Mas afinal, qual a ligação entre as mulheres, a lua e a bruxaria?
Bem, para isto, voltemos às raças anteriores ao homo sapiens
Nestas épocas as funções entre macho e fêmea eram bem definidas, dadas as compleições físicas.
Os homens saíam para caçar, enquanto as mulheres permaneciam na “tribo”.

Ao observar o desenvolvimento das plantas, as mulheres “descobrem” a agricultura e aprendem o segredo das ervas medicinais


Desta forma, por permanecerem no mesmo local, as mulheres aprendiam mais sobre a terra e as plantas, pois observavam seu desenvolvimento.
É por isto que considera-se a agricultura uma criação feminina.
E também por isto, uma maior integração com a natureza era comum às mulheres, que aprendiam quais ervas serviam para quais propósitos.

Os homens, por sua vez, sempre envolvidos na caça, desenvolviam técnicas de combate e observação, adaptando aos poucos sua visão para um campo periférico mais amplo, ao mesmo tempo mais distraídos com pequenos detalhes onde não era necessária plena atenção.
(se você não acha uma roupa em uma gaveta e a sua mulher ou mãe encontra facilmente, culpe seus ancestrais hominídeos!)

Venus of Willendorf, uma estátua do Paleolítico em adoração à fertilidade do corpo feminino, data de aproximadamente 35.000 anos


Este conhecimento de plantas era comum e respeitado entre os povos tribais mas, com as invasões bárbaras, a queda do Império Romano e o surgimento da Idade Média, as religiões abraâmicas, em especial o cristianismo, na Europa, passaram a demonizar os conhecimentos antigos.

Rituais em torno de fogueiras passam a ser associados ao demônio e à bruxaria nas religiões monoteístas


A repressão cristã contra cultos e religiões pagãs transformou deuses e outras criaturas em demônios e os conhecimentos herbalísticos em bruxaria.
A mesma mulher que havia dado a maçã a Adão, sendo responsável pelo Pecado Original, era agora amante de Satanás, assim como Lilith o foi no Início…

Deixe uma resposta