Antropomorfização Doméstica



O ser humano é um animal racional.
O ser humano é um animal e, portanto, faz parte da natureza.
O ser humano afastou-se da natureza, criando sua própria realidade de concreto.
O ser humano é um animal deslocado do restante.
O ser humano é um animal que cria outros animais.


A relação humana com os demais animais é tão antiga quanto sua própria natureza.
A princípio vistos apenas como caça e/ou ameaça, conforme os hominídeos evoluíam, também evoluía sua relação com os demais animais.

Os cães são, provavelmente, a primeira “relação simbiótica” do humano com o animal dentro de sociedade.
Cães não existiam na natureza propriamente dita.
Mas conforme os grupos de humanos estabeleciam-se em regiões e geravam acúmulos de restos de alimentos, lobos aproximavam-se para comer.

Pinturas rupestres mostram a relação antiga entre humanos e “cães”


Enquanto alguns lobos se afastavam e recusavam a presença humana, outros, mais dóceis, aproveitavam as sobras de comidas e aos poucos foram sendo domesticados.
Não se sabe ao certo em que época exata isto aconteceu, mas estudos de genoma sugerem entre 15 a 30 mil anos.

Conforme o tempo avançava e a relação entre humano e lobo estreitava-se, as novas gerações de animais foram adquirindo características diferentes dos seus parentes selvagens.
A partir daí, os diferentes locais e climas influenciaram variações nos cães que surgiram e, posteriormente, os humanos aprenderam a efetuar cruzamentos para obter novos cães, com aparência e traços que mais lhe agravam.
O cão finalmente tornara-se um animal por si só, separado de seu ancestral lupino.

Os lobos iniciaram uma relação de troca com os seres humanos


Esta relação mostra como a humanidade aprendeu a moldar a natureza às suas próprias necessidades, criando um animal capaz de ser útil na caça e para guardar vilarejos e casas, sendo fiel ao seu dono e gerando laços afetivos de ambos os lados.

Os gatos, por sua vez, possuem uma origem mais obscura.
Conforme os humanos criaram seus primeiros assentamentos, na região do Crescente Fértil (aproximadamente 10 mil anos atrás), o início da agricultura trouxe também os estoques de grãos e, com eles, os roedores.

Bastet, a deusa egípcia com cabeça de gato


Aí entram os gatos selvagens, caçadores por natureza; e o ser humano, é claro, viu a vantagem dos felinos para o controle dos ladrões de grãos.
A região do Crescente Fértil engloba parte do que atualmente conhecemos como Palestina, Síria, Iraque e, veja você, o Egito.

As sociedade cresceram e se multiplicaram, a vida humana tornou-se menos nômade e mais estável e as funções dos animais domésticos como cães e gatos começaram a lentamente modificar-se.
A companhia dos animais de estimação surgia e com ela uma verdadeira adoração pelos pets.

Aqui há de fazer-se uma diferenciação entre os animais propriamente domésticos (aqueles que habitam a residência humana) e os animais para alimento.
Vacas, porcos, galinhas e outros eram criados para abate e consumo, possuindo função diferente na sociedade.

O cavalo, diferente dos animais de corte, ganhou uma função servil para a humanidade


Porém, veio a modernidade, e com ela o êxodo em massa dos humanos, indo da vida campestre para a selva de pedra.
E nessa nova realidade, a distância do humano com o seu alimento intensificou-se.
Novas gerações nãos mais conhecem uma vaca de perto, apenas pela televisão e internet.
E isto gerou ondas como o vegetarianismo e o veganismo.

E o objetivo do texto não é julgar tais ondas, apenas analisar como a distância destes animais e o amor e adoração pelos pets tornou a relação com os animais diferente para muitas pessoas.
Obviamente, esta modificação não passaria despercebida nos jogos, não é mesmo?

Uma cena aparentemente corriqueira que chocou alguns espectadores…


Quando o primeiro gameplay do reboot de God Of War surgiu na E3 de 2016, houve uma comoção por parte de um Kratos diferente, mais velho e menos irritado, pai de um garoto em um local de origem nórdica.
Ao final do vídeo, em um momento comovente, o pai ensina o filho a matar um cervo, primeiro acertando-o com uma flecha e depois enfiando a faca na carne do animal.

Até aí, para mim, estava tudo bem.
Mas qual não foi minha surpresa ao ver vídeos de reação onde muitas pessoas viravam o rosto ao ver que o cervo seria morto?

Um animal digital provocava reações adversas em humanos.
Um animal que não existia e, para todos os efeitos, tinha aspectos fantásticos em sua aparência.
O mesmo ser humano que facilmente via uma representação de sua raça ser morta em versão digital, sem expressar sequer desconforto, agora incomodava-se com a sacrifício de uma criatura digital.

Nunca vi indignação pela morte de aranhas em jogos


Matar animais em jogos não é novidade.
Aranhas gigantes em RPG’s são figurinha fácil, mas nunca despertaram insatisfação.
Aranhas, até onde consta, são animais, certo?

Há, é claro, uma correlação com a aparência do animal e sua preservação.
Insetos, tão comuns nos jogos, são vistos como monstros e criaturas desprezíveis pela seu visual pouco amistoso.

A relação humana com seus pets criou uma distorção na percepção do que realmente representa um animal irracional.
Embora óbvio, vale ressaltar: um animal não possui senso de bondade ou maldade, ele segue seus instintos.
Conceitos abstratos são criação humana e, mesmo assim, as pessoas com frequência citam como os animais são melhores do que os humanos.

O ser humano é um animal complexo, que não vê há si mesmo como parte da natureza e, portanto, também ele um animal.
E acha que matar humanos é mais aceitável do que matar outros animais.
Uma raça capaz de concordar com a morte dela própria, mas não com outras raças.

O ser humano afastou-se da natureza, criando sua própria realidade de concreto.
O ser humano é um animal deslocado do restante.
O ser humano é um animal que cria outros animais.


P.S.: Esse texto reflexivo vem em um momento curioso, quando eu, tão distante dos animais de estimação, estou prestes a ter uma gata.
Talvez a minha percepção sobre os animais mude assim que Serena estiver aqui (sim, eu já escolhi o nome).
Então saberei se ainda resta algo de humano em mim.
Mas não, eu não vou parar de matar animais digitais… nem mesmo os racionais.

Em breve ajudando nos reviews (ou atrapalhando)

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